Como melhorar a portaria do Trabalho Social no Minha Casa Minha Vida

No último artigo desse blog, tratamos das dificuldades das prefeituras para implementarem o Trabalho Social (TS) no Programa Minha Casa Minha Vida-FAR (MCMV-FAR). Além das dificuldades de priorização dentro dos departamentos, e de contratação de empresas executoras, identificamos também dificuldades para aprovação dos projetos e relatórios devido ao exercício da discricionaridade pelos técnicos envolvidos. Discricionaridade essa que cresce conforme aumenta o número de instruções e regras da política pública.

No presente artigo analisaremos o estatuto do Trabalho Social no MCMV-FAR, hoje representado na Portaria 464/2018 do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), tendo em vista que instruções concisas, objetivos precisos em ordem de prioridade e a existência de teorias causais validadas, favorecem a realização de avaliações de impacto e a sinergia entre os agentes da implementação.

Atividade de desenvolvimento comunitário em território do empreendimento Bairro Campinas, do PMCMV-FAR, no Jardim Bassoli em Campinas/SP (fonte: Instituto Elos)

Para Sabatier e Mazmanian (1995), um estatuto, se cuidadosamente elaborado, pode afetar substancialmente o alcance dos objetivos de uma política pública na medida em que: 1) estipula um conjunto de objetivos precisos e mensuráveis; 2) incorpora uma teoria sólida que relaciona os objetivos com as mudanças de comportamento necessárias; e 3) estrutura o processo de implementação de uma forma condizente com a obtenção dessas mudanças comportamentais.

Instruções concisas

Desde o seu lançamento, o Programa Minha Casa Minha Vida-FAR contou com 4 diferentes e sucessivas portarias para o Trabalho Social (TS): 93/2010, 325/2011 e 21/3014 do Ministério das Cidades e 464/2018 do Ministério do Desenvolvimento Regional).

Quando comparamos as portarias entre si e contabilizamos a quantidade de itens e palavras das seções que orientam a elaboração dos projetos, notamos um aumento cumulativo das orientações ao longo do tempo.

A Portaria 93/2010, que primeiro orientou o Trabalho Social no MCMV, apresentou apenas 4 diretrizes para os projetos. A portaria 325/2011 aumentou as diretrizes para 6, acrescentou 11 objetivos específicos e 26 conteúdos mínimos obrigatórios.

A Portaria 21/2014 (que foi a primeira portaria a segregar o Trabalho Social numa portaria própria), acrescentou apenas um objetivo específico à lista da portaria anterior, mas aumentou em 40% a quantidade de palavras nesse tópico. Os conteúdos mínimos obrigatórios subiram de 26 para 34 e foram inseridos 4 eixos norteadores das ações do Trabalho Social, derivados do item II, do artigo 23°, do Decreto 7.499 de 16 de junho de 2011.

A atual Portaria 464/2018 do MDR manteve os mesmos 11 objetivos específicos da portaria anterior e os 4 eixos norteadores, mas aumentou os conteúdos mínimos de 34 para 62.

É como se a cada nova portaria os editores buscassem aperfeiçoar a portaria anterior, reescrevendo trechos, aumentando o detalhamento e inserindo novas orientações, na expectativa de que o aumento das instruções e regras pudesse favorecer o alcance dos objetivos.

Evolução das orientações para elaboração de projetos no MCMV-FAR-municípios acima de 50 mil habitantes

Acontece que, quanto maior a quantidade de instruções e regras para a implementação de uma politica pública, maiores são as chances de o resultado sair diferente do previsto. Pois a profusão de orientações aumenta a necessidade dos técnicos envolvidos terem que selecionar quais receberão sua atenção (MEYERS E VORSANGER, 2010). Portanto, regras e orientações concisas, aliadas a um nivelamento de informações e vivências entre os técnicos envolvidos, tendem a favorecer o alcance dos objetivos estipulados.

Objetivos precisos

Para o sucesso de uma política pública, além de instruções e regras concisas, é necessário que os objetivos sejam bem definidos e mensuráveis. A precisão dos objetivos permite a elaboração assertiva de ações que podem gerar as mudanças necessárias. A mensurabilidade permite a verificação das mudanças tendo em vista os resultados esperados.

A falta de objetivos precisos pode ainda prejudicar a utilização eficiente dos recursos públicos, pois entes contratados para a implementação tenderão a dar uma interpretação própria a objetivos imprecisos, o que pode não favorecer o resultado da política pública.

O trecho a seguir de uma entrevista com uma funcionária de prefeitura, menciona a ausência de objetivos precisos no TS do MCMV, menciona também a interpretação feita por empresas contratadas, e a existência de avaliações procedimentais ao invés de avaliações das mudanças geradas.

O Trabalho Social tem por objetivo a formação de uma consciência crítica, apropriação e valorização do investimento público para garantia do direito à moradia ou à cidade, e uma empresa [contratada para executar o TS] tem por objetivo o lucro, ela tentará reduzi-lo em atividades para cumprir cronograma. Como o resultado também tem sua subjetividade, fica como critério de medição a realização da atividade e não o resultado de um processo de trabalho social.

ENTREVISTADA D (SILVA, 2017)

Segundo Cohen e Franco (2016) “Objetivo é a situação que se deseja obter ao final do período de duração do projeto, mediante a aplicação dos recursos e da realização das ações previstas”. Para esses autores, os objetivos de um projeto devem expressar o cenário que deverá ser alcançado.

Quando olhamos os objetivos específicos descritos na Portaria MDR 464/2018, percebemos que eles não expressam o cenario que deverá ser alcançado, mas sim ações que deverão ser executadas.

Todos os objetivos começam com verbos que permitem inúmeras gradações: “promover”, ”fomentar” (4x), ”estimular”, “apoiar” (2x), “articular” (x4), “contribuir” e “gerir”. Como os resultados possíveis são inúmeros, não é possível avaliar se foram ou não alcançados. É como o desafio-pegadinha que pergunta: se dois trabalhadores conseguem cavar um buraco em um dia, quantos buracos um trabalhador sozinho consegue cavar ao longo de um dia? A resposta automática é meio buraco, mas não existe meio buraco. Qualquer buraco é buraco, independentemente do tamanho. Da mesma forma, toda ação de fomento, apoio e articulação o é, independentemente da extensão dos seus resultados.  Ou seja: as avaliações apenas permitem verificar “se” e , eventualmente, “como”, as ações foram executadas, mas não permitem avaliar se o cenário desejado foi construído, uma vez que esse cenário não é descrito.

O mesmo acontece com as ações mínimas exigidas que constam no tópico Planejamento, itens 6.5 e 6.6, do Anexo III, da Portaria 464/2018 MDR, que permitem avaliar se foram ou não executadas, mas não permitem avaliar se essas ações geraram as mudanças esperadas, pois o cenário desejado não está expressamente definido.

A partir da coleta de relatos para sua pesquisa de mestrado, Gomes (2013), identificou a ausência de avaliações de resultados nos projetos de trabalho social:

A eficiência do trabalho social era (e continua sendo) medida pelo método descrito nos projetos técnicos de trabalho social e pelas formalidades administrativas exigidas pelos programas e não por sua qualidade e resultados alcançados junto às comunidades/população participante, pois o desenho institucional e operacional dos programas acontece a priori e independe da realidade e especificidades territoriais.

(GOMES, 2013, p. 24)

Vale notar que a autora atribui a ausência de avaliações situacionais ao fato do conteúdo dos projetos ser dado pelo desenho do programa, independente da realidade local. Nesse caso a autora se refere, não aos objetivos imprecisos, mas aos conteúdos obrigatórios mínimos exigidos, os quais realmente são definidos no desenho do programa, e devem ser seguidos em todo território nacional.

Se os objetivos forem precisos e se, para cada objetivo, houver à disposição teorias de causa e efeito validadas, que indiquem como alcançar o objetivo, não é preciso o estabelecimento de ações a priori para serem executadas. No caso da necessidade de se exigir ações obrigatórias, faz-se necessário evidenciar quais os cenários que essas ações devem criar.

Disponibilidade de teorias causais

Para Sabatier e Mazmanian (1995, p. 158), teorias de causa e efeito devem estar incorporadas ao estatuto, ainda que de forma implícita, para orientar quais procedimentos podem ser executados para se atingir os objetivos.

O Trabalho Social espera produzir alterações como consequência de suas ações, e o que nos fornece previsibilidade de que as alterações desejadas serão alcançadas pelas ações é a disponibilidade de teorias causais validadas, construídas cientificamente, com base em observações sistemáticas.

Reconhecemos que o campo do Trabalho Social, por ser uma área do conhecimento relativamente recente, possui considerável espaço para a consolidação de teorias de causa e efeito que possam referendar técnicas e tecnologias para serem aplicadas nos projetos de trabalho social.

Objetivos mensuráveis

Podemos exemplificar o risco de objetivos procedimentais (ao invés de objetivos situacionais) com uma anedota em que três lavradores trabalhavam em fila plantando milho: o primeiro abria as covas, o segundo depositava as sementes e o terceiro fechava as covas. Um dia o lavrador que depositava as sementes faltou ao trabalho, mas os outros dois, fiéis aos seus procedimentos, cumpriram suas jornadas: um abrindo as covas e o outro fechando-as em seguida, ainda que sem sementes. Situação semelhante pode acontecer em projetos de trabalho social com objetivos procedimentais, se uma ação for planejada, executada, mas não houver a mudança esperada. Como a mudança desejada não é expressa, fica o procedimento como sendo o objetivo a ser cumprido.

Na anedota dos lavradores, ao invés do objetivo ser a execução do procedimento de plantio, poderia ser a obtenção de pés de milho ao ponto de colheita. Teorias de causa e efeito, construídas com observação sistemática do processo de plantio e desenvolvimento do milho, atestam que a germinação dessa gramínea acorre de 4 a 14 dias do plantio, e o ponto de colheita se dá em até 100 dias. Assim, após 100 dias, podemos avaliar se os procedimentos planejados e executados (embasados em teorias validadas) surtiram o efeito esperado. No caso de ser inviável esperar 100 dias para se aplicar a avaliação, é possível atestar que o plantio foi bem sucedido verificando-se a germinação após duas semanas.

Da mesma forma, ao invés de um objetivo num projeto de trabalho social ser a execução de determinada capacitação para o emprego, poderia ser um cenário de alcance do emprego. Pode não ser possível avaliar no curto prazo se uma ação de aumento da empregabilidade alcançou seu objetivo, mas de posse de uma teoria de causa e efeito validada, que demonstre que a capacitação para determinada atividade aumenta a probabilidade de emprego, então, avaliar se os participantes se tornaram de fato capacitados, pode ser suficiente. E para isso não basta verificar se houve participação na ação e se os participantes gostaram da ação, é preciso aplicar avaliações que verifiquem na prática as mudanças alcançadas. No caso de capacitações, isso pode ser feito com avaliações que demonstrem a aquisição de conhecimentos e habilidades adquiridas pelos participantes.

Obrigado pela leitura!

Leia também:

Ensaio para consolidação de objetivo único para o Trabalho Social no MCMV

Trabalho Social e Desenvolvimento Comunitário no Brasil – Uma história

Por que prefeituras não executam o Trabalho Social no MCMV-FAR

O Programa Minha Casa Minha Vida 2009 a 2021

Referências

BRASIL. Lei Nº 11.977, de 7 de julho de 2009.

_. Lei Nº 12.424, de 16 de junho de 2011.

_. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Conselho das Cidades. Página de internet <http://www.cidades.gov.br/conselho-das-cidades Acesso em: outubro de 2015

_. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Instrução Normativa Nº 8 de março de 2009.

_. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Portaria Nº 93, de 24 de fevereiro de 2010.

_. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Portaria Nº 325 de 7 de julho de 2011.

_. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Portaria Nº 518, de 8 de novembro de 2013.

_. MINISTÉRIO DAS CIDADES. Portaria Nº 21, de 22 de janeiro de 2014.

COHEN, E.; FRANCO, R. Avaliação de Projetos Sociais. Editora Vozes. Petrópolis. 2016.

IPEA. Pesquisa de satisfação dos beneficiários do Programa Minha Casa Minha Vida. Brasília, DF: MCIDADES; SNH; SAE-PR. 2014

MEYERS, M. K.; VORSANGER, S. Burocratas de nível de rua e a implementação de políticas públicas. In: PETERS, G.; PIERRE, J. (Org.). Administração pública: coletânea. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 249-270.

SABATIER, P. A.; MAZMANIAN, D. A. A conceptual framework of the implementation process. In: THEODOULOU, S.; CAHN, M. (Ed.) Public policy: the essential readings. Upper Saddle River: Prentice Hall, 1995. p. 153-172.

_. The implementation of Public Policy: a framework for Analysis. Policy Studies Journal, 8: 538-560. 1980.

SILVA, G. J. P. Contribuições para a Habitação Social: Uma Análise de Implementação do Trabalho Social no Programa Minha Casa Minha Vida-FAR. Dissertação de Mestrado – Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo. São Paulo, 2017

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